O Globo, 90 anos: O multifacetado pai do bolivarianismo

Hugo Chávez, de articulador e alvo de golpes a presidente absoluto da Venezuela por 11 anos

POR JANAÍNA FIGUEIREDO / CORRESPONDENTE

18/07/2015 7:00 / ATUALIZADO 18/07/2015 8:21

O presidente venezuelano Hugo Chávez durante a última campanha, em 2012. Ele morreu no ano seguinteFoto: HO / AFP
O presidente venezuelano Hugo Chávez durante a última campanha, em 2012. Ele morreu no ano seguinte - HO / AFP
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BUENOS AIRES — Na noite de 11 de abril de 2002, uma notícia alterou o ritmo de todas as redações latino-americanas: o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, líder de levantes militares na década de 90, fora vítima de um golpe e estava desaparecido. Era necessário chegar o mais rápido possível a Caracas e, mesmo sem conhecer o país, embarquei rumo à primeira de muitas coberturas durante anos emblemáticos da revolução bolivariana. Foram sete viagens nos últimos 13 anos para acompanhar momentos históricos, entre eles o referendo sobre a continuidade do líder no poder, em 2004; a última eleição de Chávez, em 2012, e a atrapalhada vitória nas urnas de seu sucessor, o atual presidente, Nicolás Maduro.

A primeira vez que o Movimento Bolivariano aparece nas páginas do GLOBO, remonta a dez anos antes. Justamente no primeiro levante contra o presidente Carlos Andrés Pérez, liderada pelo então comandante Hugo Chávez, em 5 de fevereiro de 1992. De lá para cá, o nome de Hugo Chávez ganhou diversos atributos: golpista — "Golpistas teriam planejado massacre", na edição do dia seguinte; rebelde, como criador do grupo inspirado em Simón Bolívar; e líder, quando, da cadeia, comandou a rebelião que culminou em outra tentativa fracassada de golpe.


Hugo Chavez: "Vitória de ex-golpista na Venezuela" - Terceiro / Agência O Globo

Nos anos seguintes, depois que Pérez deixou o poder, afastado por corrupção, Chávez retorna às páginas do GLOBO, dessa vez como "ex-golpista" e candidato. Em 10 de novembro de 1998, a coalizão liderada por ele arrebatava 34% das cadeiras do Congresso. E no mês seguinte, "a vitória do ex-golpista na Venezuela" era a manchete do jornal do dia 7 de dezembro de 1998. Com 57% dos votos, e uma multidão comemorando nas ruas, Hugo Chávez tornava-se presidente, eleito democraticamente.

Quatro anos depois, naquele 11 de abril, encontrei um país às escuras, onde ninguém sabia realmente o que estava acontecendo. Na véspera de minha chegada, o presidente fora destituído e retirado violentamente do poder. Em meu primeiro dia na capital venezuelana, foram dissolvidas a Assembleia Nacional (AN) e o Supremo Tribunal de Justiça e anulada a Constituição de 1999, aprovada durante o primeiro ano de governo Chávez. Assumiu a Presidência Pedro Carmona, que fora presidente da Fedecamaras, câmara empresarial que organizou protestos contra o governo bolivariano nos dias prévios ao golpe. A grande pergunta que não queria calar naquele momento era: Chávez havia renunciado?

O paradeiro de Chávez ainda era um grande mistério. Os principais dirigentes do chavismo, entre eles Diosdado Cabello, atual presidente da Assembleia Nacional, estavam na clandestinidade. Junto a um grupo de jornalistas estrangeiros decidi dar uma volta pelo centro da cidade, onde, na véspera, pelo menos 19 pessoas foram assassinadas em meio a protestos. Numa das paradas para tentar obter depoimentos da população ouvimos tiros e nos jogamos no carro. Foram momentos de muita tensão, num país que parecia estar abandonado.

A manchete do dia seguinte — "Chávez é preso e Venezuela sofre pressão por eleições já" — mostrava que o empresário assumira o governo, dissolvera o Parlamento e destituíra juízes da Suprema Corte. O então presidente brasileiro Fernando Henrique pedia eleições o mais rapidamente possível.

Foram 47 horas de ausência, uma derrota temporária que, porém, deu ao presidente, que jurou nunca ter renunciado, a força necessária para governar durante os seguintes 11 anos, com poder absoluto. Antes do golpe, Chávez estava às voltas com conflitos com câmaras empresariais, sindicatos, meios de comunicação e enfrentava resistências em setores das Forças Armadas. O que veio depois foi um presidente fortalecido, favorecido pela alta do preço do petróleo e ciente de que era necessário encontrar um rumo para sua revolução.

No mesmo ano, já em dezembro, o líder bolivariano enfrentou uma crise econômica desencadeada pela greve organizada por opositores dentro da estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA). Chávez decidira afastar a diretoria da empresa, que se mostrara relutante a aceitar suas ordens, e sua política intervencionista provocou um terremoto econômico. Foram mais de quatro meses de paralisia quase total. O desabastecimento chegou a níveis críticos, mas o chefe de Estado se manteve firme em sua posição e terminou ganhando a queda de braço.

CARISMA INDISCUTÍVEL

Superado o golpe e a greve de 2002, Chávez tornou-se um presidente imbatível. Com recursos milionários do petróleo e o controle total da PDVSA, iniciou a etapa de ouro de sua revolução, financiando as chamadas missões (programas sociais). Começaram a chegar cada vez mais cubanos ao país, entre eles médicos, que foram destinados a trabalhar nas favelas. As missões explicam, em grande medida, o esmagador triunfo de Chávez no referendo de 2004 sobre sua continuidade no poder, com cerca de 56% dos votos.

A oposição conseguiu as assinaturas necessárias para convocar o plebiscito, mas o presidente conquistou um triunfo contundente. "Observadores respaldam Chávez", dizia O GLOBO, no dia seguinte ao referendo: "O atual governo, foi respaldado 4.991.483 milhões de pessoas, o que representa 58,25% do total de votos".

Naquele ano, o Palácio Miraflores confirmou um pedido de entrevista exclusiva com o chefe de Estado, a única que fiz durante suas sucessivas presidências. Foram cerca de 40 minutos de conversa, onde confirmei o carisma indiscutível de Chávez e, também, sua capacidade de manipular a realidade e colocá-la, sempre, a seu favor. A lembrança do golpe de 2002 ainda estava muito presente e o presidente se considerava absolutamente vitorioso. Se dispôs, até mesmo, a iniciar um processo de reaproximação com os Estados Unidos, algo que, finalmente, nunca aconteceu.

Chávez se sentia um presidente todo-poderoso e não o escondia. Os que vieram foram anos de leis habilitantes (que lhe permitiram governar por decreto) e recursos ilimitados para financiar suas missões e, também, suas alianças com países como Irã, Cuba, Nicarágua, Argentina e Bolívia, entre outros.

Em 2007, Chávez sofreu seu único revés nas urnas: a derrota do projeto de reforma constitucional que incluía, entre outras iniciativas, a reeleição indefinida. Mas o presidente voltou à carga em 2009 e conseguiu vencer outro referendo, realizado exclusivamente para aprovar a possibilidade de sua nova reeleição (Chávez foi eleito em 1999, 2000, 2006 e 2012). A oposição parecia mais fortalecida, mas o líder bolivariano confirmou que ainda tinha fôlego por um tempo.

A economia já começava a dar claros sinais de esgotamento. A inflação era cada vez mais alta, a insegurança e violência preocupações de todos os dias. Mas o controle total dos recursos do Estado, cada vez mais meios de comunicação alinhados com o Palácio Miraflores e uma base chavista ainda expressiva e fiel a seu líder representavam uma equação difícil de superar para a oposição.

Em 2011, foram confirmados os problemas de Saúde de Chávez e, com eles, a revolução se estremeceu. O presidente decidiu encarar uma nova campanha eleitoral, que esteve rodeada pelos rumores sobre sua doença, confirmada, ainda sem muitos detalhes, em março de 2012: "Chávez confirma câncer e fará radioterapia", anunciava O GLOBO.

Dez anos depois do golpe, cobri a última eleição de um dos políticos latino-americanos mais importantes de todos os tempos. Chávez tentou mostrar-se vital, mas a deterioração de sua saúde era notável. Os rumores sobre o câncer e sua recuperação eram frequentes nas páginas do GLOBO.

Após o encerramento da campanha, realizado debaixo de chuva, os boatos sobre a piora de sua saúde se multiplicaram, mas nada era confirmado. Chávez derrotou Henrique Capriles por 55,1% contra 44,2% dos votos, mas em dezembro de 2012 partiu para Cuba e deixou claro que seu sucessor devia ser o então chanceler Nicolás Maduro. Foram meses angustiantes, para os venezuelanos e para os jornalistas, que esperávamos, a todo momento, a notícia de sua morte.

No meio de tudo isso, aprofundou-se o debate sobre a situação institucional, a decisão de manter Chávez no cargo, apesar de sua ausência prolongada. Passei Natal e Ano Novo com malas prontas, aguardando uma confirmação que chegou um pouco depois, em março de 2013. "Câncer derrota Hugo Chávez", dizia a matéria principal da edição especial, no dia seguinte ao anúncio. Foram oito páginas que mostravam o luto nas ruas, a trajetória de Chávez, suas contradições e seu poder de liderança.

A situação da Venezuela era dramática. Seu líder morto, os chavistas perdidos, a economia descontrolada. Em menos de dois meses foi organizada a eleição presidencial de abril de 2013, o primeiro pleito pós Chávez. Apesar de contar com o respaldo do grande comandante, Maduro não era favorito. O clima de insatisfação social era grande, até mesmo nas favelas de Caracas, entre elas Petare, uma das maiores da América Latina. "Queremos viver melhor", me diziam algumas pessoas.

Maduro não era Chávez e a Venezuela começava a pensar na possibilidade de uma mudança. A contagem dos votos demorou muito mais do que o previsto e durante pelo menos três horas os rumores sobre uma vitória do opositor Henrique Capriles circularam por todo o país. Finalmente, quase à meia noite, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) confirmou o triunfo de Maduro, por 1,6% de vantagem. As dúvidas foram e ainda são grandes.

Nos dias posteriores à eleição, jornalistas locais como Nelson Bocaranda foram obrigados a esconder-se, pela perseguição oficial. Desde então, a pressão à mídia privada só aumentou, chegando a uma ordem de proibição de sair do país adotada este ano, que afeta 22 diretores de jornais, acusados de difamação por terem reproduzido uma reportagem do "The Wall Street Jornal" sobre a suposta participação de Cabello em operações de lavagem de dinheiro e narcotráfico.

Quando abandonei Caracas pela última vez, meu passaporte foi solicitado por um agente militar na fila de check in do aeroporto e retido durante cerca de 10 minutos. Foi impossível não sentir o clima de repressão, que alcançou seu auge em 2014, durante uma onda de protestos contra Maduro que provocou a morte de mais de 40 pessoas.

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